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Arte, clínica, desejo e Camarón!

Recentemente vi dois documentários sobre Camarón de la Isla na Netflix, um é um filme, “Camarón – The film” e outro uma série de uma temporada, “Camarón – Revolution”. Aproveito para deixar como dica cinematográfica. No documentário é possível notar a mitificação do artista, já no filme, sua humanidade aparece mais, pois também aparecem mais suas contradições e situações de vida cabíveis a qualquer ser humano.

Ao trazer este artista o que quero abordar é a intersecção entre a arte, a clínica e a micropolítica ativa do desejo. Suely Rolnik distingue as políticas do desejo em ativas e reativas, e esta diferença se dá, ela diz, pelo grau de submissão a que tais micropolíticas estão submetidas ao regime de inconsciente dominante ao qual ela chama de Inconsciente Colonial Capitalístico. 

Quem foi Camarón de la Isla?

José Monje Cruz deveio Camarón. Este foi um grande cantor de flamenco nascido em Cádis, região andaluza da Espanha. Ele trouxe um novo paradigma para essa arte quando se põe a experimentar variações no modo de cantar flamenco, bem como quando ultrapassa a fronteira do flamenco fazendo intercâmbio com outros estilos musicais como o rock e o pop. Ele recebeu muitas críticas da tradição flamenca por se colocar em uma dinâmica artística experimental, mas seguiu firmando a diferença de expressão que se fazia nele, apesar dele e através dele.  No sentido artístico não é que ele se pôs deliberadamente “diferentão”, mas a diferença desejante encontrou caminhos e agências em sua subjetividade para se expressar.

Por que abordar arte, clínica e políticas do desejo a partir de Camarón?

Primeiro, eu sou uma psicóloga que tem uma inserção nas artes e ao longo do meu percurso profissional venho no exercício intensivo de desfazer a dicotomia entre esses campos que me compõem. Isso porque a psicologia hegemônica é uma profissão engessada, por isso há sim um esforço e intenção da minha parte de não opor arte e o fazer clínico na psicologia. A minha clínica é uma clínica política e esteticamente minoritária.

Segundo, porque a arte flamenca povoa o meu cotidiano já que é um campo de interesse artístico que tenho e os elementos que me povoam estão sempre em comunicação, além disso, Camarón de la Isla é um acontecimento e eu fiquei bastante impressionada com sua vida retratada nos documentários. Exatamente porque foi uma vida comprometida com um desejo singular.

Seguindo nos motivos e ainda na esteira de Rolnik a arte aqui é compreendida como um dispositivo analítico da formação do inconsciente, da produção das subjetividades e da orientação do desejo, assim como a clínica.

Com Camarón ficamos diante de uma experiência subjetiva ativamente desejante pela maneira como este homem se pôs a experimentar o cante flamenco ao longo de sua breve vida. O desejo em sua política ativa, cria matérias, objetos e expressões que possibilitam a germinação de mundos até então virtuais. Em Camarón, os embriões de mundo se expressavam e se materializavam em cante e música que paradoxalmente era flamenco e não era flamenco. É interessante apontar que o flamenco é uma arte envolta em um secular paradoxo, ao mesmo tempo em que é uma expressão artística oriunda da fusão cultural de diversos povos tem também em sua característica uma reverência à pureza e um apego austero a um tradicionalismo. Mas, na minha compreensão e leitura a essência do flamenco é a mistura.

Para cartografar o desejo é preciso observar vários elementos, como por exemplo, os elementos sociais de raça, gênero e classe que são fundamentos da expressão da subjetividade. É preciso apontar que um contexto socio-cultural favorece para que José Monge Cruz se torne Camarón de la Isla. Ele é um homem  - de origem muito pobre - e como vivemos sobre a égide patriarcal as mulheres da espécie humana são compulsória e mesmo violentamente direcionadas à função social de cuidado das crianças. Com Camarón não foi diferente, depois que se casou com uma moça muito jovem ele teve com quem deixar seus filhos e quem gerenciasse sua vida doméstica para que ele se desenvolvesse artisticamente e consequentemente ascendessem socialmente. E, ainda quando era adolescente a necessidade material junto com o fato de ser homem faz com que ele tenha um pouco mais de liberdade para sair do seu círculo social e se aventurar em outros ambientes.

Camarón se tornou um dos mais célebres e mundialmente reconhecidos ciganos. Os ciganos – na Espanha se diz gitano -  é um grupo racial minoritário. Camarón se tornou símbolo de orgulho para os ciganos andaluzes que são há séculos perseguidos e marginalizados na Europa como um todo e na Espanha em particular. Ele se tornou um mito para os gitanos andaluzes. Sem deixar de compreender como importante esta autoestima que Camarón leva para os ciganos, mas ainda dentro de uma análise da formação do desejo a mitificação de uma vida é fazer morrer uma política ativamente desejante, é transcender o que se passa na existência e obliterar as agências para o desejo se expressar em uma subjetividade tão singular como foi Camarón.

A arte e a clínica neste sentido têm a virtualidade de atuarem e transformarem as políticas do desejo (micropolíticas), das sensibilidades e das representações, na perspectiva de pensar e fazer uma clínica a partir deste lugar da experimentação e variação de expressão estética e de linguagem. Na minha conduta clínica esta intersecção aparece no sentido de que tanto a arte quanto a clínica tem a ver com uma experimentação, fazer um compasso com palmas a lá flamenco pode ser uma intervenção clínica tão efetiva e legítima quanto uma intervenção pela palavra ou pelo silêncio. Aqui devemos somar mais um elemento para poder construir este pensamento. Um toque de Pina Bausch. Ao trazer a coreógrafa alemã quero destacar a importância do rigor experimental isso para deixar posto que experimentação não se restringe a um lugar fugaz e negligente. Arte e clínica demandam tal rigor experimental para que as políticas de formação do desejo possam ser ativas e formarem matérias e expressões igualmente ativas e não reativas e mesmo reacionárias ou fascistas.

 








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